Com objetivo de conhecer os arquitetos, os projetos e as histórias por trás da arquitetura portuguesa de referência, Sara Nunes, da produtora de filmes de arquitetura Building Pictures, lançou o podcast No País dos Arquitectos, em que conversa com importantes nomes da arquitetura portuguesa contemporânea.
No episódio desta semana, Sara conversa com os arquitetos Susana Rosmaninho e Pedro Azevedo, do atelier Rosmaninho + Azevedo, sobre o projeto para o Centro Interpretativo do Vale do Tua, localizado na cidade de Carrazeda de Ansiães. Reveja as outras entrevistas realizadas pelo podcast No Pais dos Arquitectos e leia a transcrição da entrevista com Andrade, a seguir.
Reveja, também, as entrevistas já publicadas do podcast No País dos Arquitectos:
- Carrilho da Graça
- João Mendes Ribeiro
- Inês Lobo
- Carlos Castanheira
- Tiago Saraiva
- Nuno Valentim
- Nuno Brandão Costa
- Cristina Veríssimo e Diogo Burnay
- Ricardo Bak Gordon
- Paula Santos
- Carvalho Araújo
- Guilherme Machado Vaz
- Menos é Mais Arquitectos
- depA architects
- ARX Portugal
- Frederico Valsassina
- PROMONTORIO
- Camilo Rebelo
- Pedro Domingos e Pedro Matos Gameiro
- Luís Rebelo de Andrade
Sara Nunes - Bem-vindos, Susana e Pedro!
Susana Rosmaninho - Olá, Sara! Obrigada.
Pedro Azevedo - Olá! Muito obrigado pelo convite.
SN - Nós estamos muito entusiasmados com este projecto. Confesso que já estive várias vezes para o visitar, mas ainda não tive oportunidade. O projecto sobre o qual vamos estar à conversa hoje tem uma relação com uma linha de comboios centenária: a linha do Tua. Essa linha foi, entretanto, desactivada e parte da linha ficou, inclusivamente, submersa depois da construção da barragem do Tua. Pergunto-vos se alguma vez fizeram a linha de comboio do Tua? E se sim, que memórias guardam dessa viagem e da estação? Começo por ti, Pedro.
PA - Sim, nós fizemos essa viagem logo quando começou esta polémica toda da construção. É preciso começar por contextualizar este projecto. Ele insere-se numa dinâmica muito maior do que o próprio edifício. Falo aqui da construção da barragem e daquela alteração do vale. E, sim, quando percebemos o que ia acontecer apressamo-nos a percorrer o que ainda era possível trilhar dessa mesma linha, embora o tenhamos feito quando a construção do paredão já estava iniciada. Fizemos cerca de 20 km e foi uma experiência que nos marcou bastante! Nessa altura, estávamos longe de saber que iríamos fazer este projecto. Convém informar que isto passou por duas fases. Teve uma fase mais de concepção de toda a estratégia e tem a fase do projecto. A Susana esteve envolvida logo desde muito cedo. Trata-se de um projecto museológico.
SR - Sim. Trabalhei com a Direcção Regional de Cultura do Norte na elaboração do projecto museológico para o Centro Interpretativo do Vale do Tua porque, acima de tudo, era preciso uma estratégia, que não existia. Nesse sentido, eu elaborei, juntamente com outro colega, a definição do que é que deveria ser não só a exposição, como também a própria estrutura do Centro Interpretativo, que faz parte (tal como o Pedro disse anteriormente) de um projecto mais alargado que era a intervenção ao longo do vale. Os concelhos abrangidos pela construção da barragem do Tua e a intervenção no património... Eu participei nesse projecto com muito gosto e, posteriormente, juntamente com o Pedro, na elaboração do projecto de arquitectura do Centro Interpretativo do Vale do Tua.
SN - Só para situar as pessoas, quando este projecto avança – e falo aqui, inclusivamente, do concurso para este Centro de Interpretação – a barragem já estava a funcionar?
SR - Exactamente.
SN - E já estava a funcionar mais ou menos há quantos anos? Só para termos uma ideia.
SR - Não estava a funcionar a cem por cento. Já andava em testes. A barragem já estava construída, a central técnica estava a ser finalizada e estava praticamente em funcionamento na sua totalidade.
SN - Mas parte do território já tinha sido, submerso?
SR - Sim, sim.
SN - Ok, já tinha acontecido isso.
SR - Sim. Não na sua totalidade tal como encontramos hoje em dia, mas, sim, parte já estava submerso. Já não era possível percorrer os 20 km a pé que tínhamos feito, antes de iniciarem o enchimento do vale.
SN - Ah, também fizeram a pé!
SR - Sim, sim. Há pouco, penso que o Pedro não se fez entender. Nós percorremos esse trilho a pé.
SN - Que giro!
SR - Eu cheguei a fazer a linha do Tua até Mirandela, de comboio, mas há muitos anos. Antes de iniciarem o enchimento da barragem, nós fizemos esse percurso a pé. Tudo isto aconteceu ainda antes de fazermos o projecto para o Centro Interpretativo.
SN - É justamente por causa desse projecto da barragem – que, entretanto, tem um impacto bastante grande numa série de concelhos vizinhos – que surge este projecto. Pedro, podes contar-nos um pouco mais sobre este contexto e de que forma é que a UNESCO pressionou o Estado para que uma série de projectos pudessem compensar estas populações e esse território? Para além disso, queria que nos falasses um pouco de como é que encontraram esta estação porque este Centro Interpretativo do Vale do Tua situa-se numa estação de comboio. Gostava de saber como é que encontraram essa estação antes da vossa intervenção.
PA - Isto é um processo que penso que foi das primeiras... A primeira vez que isto aconteceu como medida de compensação. O que é que isto quer dizer? A partir do momento em que houve esta ideia de construir uma barragem e aproveitar ali o rio Tua, percebeu-se que seria necessário desenvolver uma série de medidas de compensação para tentar compensar ou mitigar aquela transformação profunda. Genericamente existiram três grandes medidas e duas delas já foram implementadas. Uma foi a criação do Parque Natural Regional do Vale do Tua, que pretende explorar aquelas questões da biodiversidade, da fauna e da flora, em específico, daquele contexto.
A outra foi o Plano de Mobilidade de Vale do Tua (muito falado) onde se tenta mitigar a perda da linha de comboio e resolver os problemas relacionados com a falta de acessibilidade a Trás-os-Montes, que penso que ainda não está em funcionamento e se encontra num processo muito complicado. Havia aquele modelo de começar a juntar barragem com barco e depois fazer o transbordo para um comboio na estação de Brunheda até Mirandela. Essa parte não nos diz respeito directamente, mas fomos percebendo e acompanhando mais ou menos de longe esses desenvolvimentos. A terceira medida foi a criação deste Centro Interpretativo que permitisse ser uma espécie de grande porta de dilvugação e de conhecimento daquilo que foi o Vale do Tua porque aquele lugar da estação é curioso realmente! Conforme nos íamos envolvendo mais no projecto, percebemos que aquele lugar só existe por causa do comboio. É mesmo verdade! Aquele lugar é fruto de transformações maiores do que o próprio lugar. O que é que eu quero dizer com isto? O Vale do Douro, naquele local, antes da linha de comboio do Douro era uma escarpa mais ou menos inclinada. O que é que a linha do Douro faz? Como o comboio tem de andar numa superfície mais ou menos plana e com uma certa largura, fez-se um corte na escarpa, criou-se uma plataforma de nível e aterrou-se parte do rio.
SN - No fundo, o comboio tornou aquele espaço habitável, não é?
PA - Exactamente. E nós percebemos isso muito bem quando vemos as imagens aéreas da zona da estação. Percebe-se que há um corte na escarpa muito nítido e verifica-se que houve, inclusive, um estreitamento do rio no século XIX, quando lá foi depositada terra, por isso aquela zona já foi...
SN - Muito modificada pelo Homem.
PA - Exactamente! Pelo comboio no século XIX e agora no século XXI com uma barragem e isto acaba por fazer mais ou menos parte destas dinâmicas destas infraestruturas maiores do que o próprio lugar. E depois era mais um ponto na linha do Douro em que se cruzava uma linha paralela a um rio. Já tínhamos isso na linha do Corvo, do Sabor, do Tâmega (penso eu também). Esta do Tua era mais uma que contribuía bastante para a viabilidade da linha do Douro. Entretanto, as coisas foram-se modificando e estas linhas secundárias desaparecem e o Douro continua, já não completo, mas... Há esta transformação do sítio com escalas gigantes que, por vezes, passam despercebidas, mas é isto que acontece. A estação, em si, os edifícios... Nós tínhamos ali uma estação com alguma importância, onde se dava início à linha do Tua no cruzamento com a linha do Douro.
SN - Portanto, terminava uma e iniciava outra, não era?
PA - Não, a linha do Douro continuava até Espanha.
SN - Ok, ok.
PA - Mas a linha do Tua iniciava ali e a sua máxima expansão foi até Bragança. Aquilo era o ponto – se quisermos entender de outra forma – de cruzamento entre o Porto e Bragança. Em toda aquela zona havia mercadorias da Quinta do Romeu, como a cortiça e o vinho, que chegavam aqui ao Porto. Na linha do Tua situava-se o ponto de transbordo. Não era um apeadeiro sequer. Era uma estação com vários armazéns e com muita importância mesmo. Quando chegámos àquele local, encontramos uma estação com excesso de espaço porque, entretanto, tudo isto desaparece. Passam dois ou três comboios por dia, em cada sentido, e aquilo torna-se completamente desocupado. A estratégia do Centro Interpretativo foi não construir mais nada porque, claramente, já havia construção que chegasse. Aquele conjunto da estação ia degradar-se e iria transformar dois edifícios que se complementaram, como a própria obra o demonstra.
SN - Este projecto é, essencialmente, constituído por dois edifícios. Eu quase os distingo pelas materialidades. Quem depois tiver oportunidade de ver imagens nos artigos do Público e da ArchDaily, vai perceber isso. Um dos edifícios era de madeira e o outro foi transformado em zinco. Falem-nos sobre a vossa estratégia. Já agora aproveito para mencionar que o nosso anterior convidado, o arquitecto Kengo Kuma, disse que, antigamente, os clientes, quando lhe perguntavam acerca do projecto, mostravam maior curiosidade sobre qual era a forma dos edifícios. Ultimamente, aquilo que lhe perguntavam era de que materiais seriam os edifícios. Eu, no fundo, estou a fazer-vos a mesma pergunta e a tentar perceber porque é que foi essa escolha de materiais tão diferente entre um e o outro.
SR - A estratégia, desde início, quando visitamos o lugar foi, efectivamente, de recuperar o hangar, o armazém ferroviário mais antigo, que era de madeira e que estava lá praticamente intacto, desde o final do século XIX. As pequenas intervenções que teve foram no interior. Isto é, um anexo, no interior, que obviamente demolimos. O que lá estava encontrava-se em muito mau estado, mas a madeira era a original, por isso quisemos preservar esse edifício e recuperá-lo ao máximo, sendo que simplesmente – agora estou a falar de uma forma que parece que foi muito fácil – foi só mudar algumas tábuas. Neste caso, aquelas que, efectivamente, estavam podres. No interior é que se nota a intervenção contemporânea com um contentor que se destaca da estrutura original, que tem as funções que eram necessárias das instalações sanitárias e dos arrumos, etecetera. O outro armazém, que já existia, mas não com esta forma e materialidade teve um incêndio em Agosto, de 2009, por isso a sua estrutura original, em madeira, ardeu e desapareceu. Logo já não tínhamos nada original dessa estrutura. A única coisa que se manteve e que ainda se mantém (só que está escondido atrás do zinco) são as paredes de alvenaria de pedra.
Isso está lá, mas quando foi necessário pensar numa estratégia achámos que o mais adequado seria dar-lhe uma linguagem mais industrial como os depósitos de água que se encontram atrás do edifício e também tendo em conta a questão dos comboios, nomeadamente os comboios que agora já não circulam na linha do Douro, mas os da Sorefame.
SN - São aqueles que também têm, na realidade, aquelas chapas metálicas e onduladas como o vosso edifício.
SR - Sim, só que são na horizontal. No nosso edifício as chapas orientam-se na vertical, mas, sim, foi um pouco por aí. Achámos que seria interessante explorar essa materialidade e essa expressão no edifício e também ter, no fundo, uma monomaterialidade comum, que de certo modo acontece no edifício de madeira. Só a cobertura é que não é de madeira porque, efectivamente, na altura, não haveria propriamente esse conhecimento para o fazer e daí ser em telha. No fundo é daí que deriva esta nossa escolha pelo zinco canelado, que dá uma expressão semelhante, dá uma reinterpretação da madeira do outro armazém.
SN - É a reinterpretação de uma forma contemporânea, não é? Por um lado, tem um edifício mais ligado à História e, por outro lado, existe um edifício mais contemporâneo.
SR - Exactamente.
SN - Pedro, há pouco a Susana referia que mantiveram o edifício e que a forma como foi feito parecia muito fácil, mas eu sei que o edifício em madeira exigiu um trabalho de minúcia grande para se conseguir manter as suas características originais. Tiveram de fazer aqui um trabalho quase ao milímetro de substituição daquelas peças de madeira, que já não davam para manter. Podes falar um pouco sobre esse processo tão minucioso que este edifício em madeira exigiu.
PA - Sim, de facto, foi uma peça que foi palmeada dos dois lados com todo o rigor e pormenor para substituir somente o que era necessário, mas eu gostava de voltar um pouco atrás e explicar como é que estas coisas nascem. Este processo não foi assim tão linear. Agora nós conseguimos contar a história...
SN - Porque estão distantes, não é?
PA - Sim, mas isto nasce num concurso de concepção e construção. Ou seja, não era um concurso para arquitectos. Nós juntámo-nos a um empreiteiro que depois nem correu bem (mas não interessa). O projecto nasce com constrangimentos orçamentais porque a palavra final não era nossa. O edifício que agora é em zinco... Nós sempre tivemos duas opções. Numa delas, que foi a que aconteceu, tínhamos o zinco. Numa fase inicial da concepção da construção não nos deixaram usá-lo por causa do preço.
SN - Ok.
PA - E avançámos com uma solução de cortiça. O edifício tinha a mesma volumetria, todas as funções da mesma forma. Só que o revestimento era em cortiça.
SN - O edifício das exposições era em cortiça, é isso?
PA - Exactamente!
SN - Ok!
PA - E isto continua na lógica do monomaterial, da cobertura, das dobragens para o alçado - esta ideia era um bloco de cortiça, que encaixava no orçamento da empresa com quem íamos concorrer. A nós não nos agradava tanto como esta hipótese do zinco, mas consideramos que também seria uma opção viável.
SN - A cortiça mantiveram-na. Colocaram-na no interior, não é?
PA - Sim, conseguimos mantê-la noutras doses e usando-a de outra maneira. Mas o que é que acontece? Quando o projecto...
Nós estamos a falar do Douro Património Mundial da UNESCO. Sobrepõem-se ali todo o género de entidades e de pareceres que podemos imaginar, como o IP Património, o IP, a Direcção Regional de Cultura do Norte, minas, a APA. E um dos pareceres da Direcção Regional de Cultura do Norte mostrava que deveria ser explorada uma linguagem mais industrial e menos abstracta (como aquela que tínhamos no início). Isto foi muito adverso porque, entretanto, o dinheiro disponível para o edifício não aumentou e isto ficou muito mais apertado, mas lá conseguimos voltar a construir e a incluir no projecto o zinco, que sempre esteve em cima da mesa, mas por causa disto... Tivemos de aproveitar este constrangimento e isto que seria uma dificuldade para fazer aquilo que, se calhar, sempre quisemos fazer em primeiro lugar. Depois o zinco também nos pareceu uma opção muito viável porque, em termos de manutenção, percebemos que os edifícios em Portugal nunca têm a manutenção desejada. E quanto mais longe das cidades e mais longe dos órgãos de gestão pior.
SN - E isso também representa custos, não é?
PA - Claro e por isso é que pensamos e percebemos que a chapa de zinco teria uma durabilidade interessante, neste contexto, em que se percebe que é difícil. A população é escassa, é um território isolado, tem as suas especificidades de temperatura e percebemos que o zinco era o material adequado por tudo isto e pela sua plasticidade. Como é uma chapa relativamente fácil de trabalhar, conseguimos aproximá-la da métrica da fachada do edifício, do canelado. Também foi uma surpresa porque na nossa cabeça pensamos que seria fácil e mais ou menos standard encontrar estas chapas caneladas que se vão vendo pelo país, mas percebemos que não. A chapa é vendida lisa e depois cada instalador é que a trabalha.
SN - Ah, ok, ok! Não sabia disso.
PA - Sim, nós tivemos que encontrar ali soluções para tentar fazer aquela quantidade toda. Acabou quase por ser um estampado, uma situação meio híbrida com quinais na estampagem para a chapa não rasgar e para não haver desperdício. Conseguimos construir aquilo. O edifício de madeira foi uma operação muito... Foi fácil porque o princípio era: primeiro limpá-lo todo porque ele tinha a sujidade acumulada de um século. O pó, o fumo e, nestes últimos tempos, os pombos introduzem ali lixo, que é preciso retirar para perceber ao certo o que é que temos ali. Depois de limpar o edifício, a madeira estava, na maior parte, em óptimas condições. Obviamente que há questões de humidade no contacto com o chão. Isso não põe em causa a estrutura do edifício e nós conseguimos rapidamente, depois de ele estar limpo, perceber onde é que era preciso, só nesses sítios em específico, remendar. Basicamente, foram feitas umas próteses de madeira nova com a mesma secção, da mesma madeira de pinho, retirou-se o podre e refez-se, exactamente, com a mesma pregagem e com a mesma madeira tudo por fora. Por dentro, tivemos de introduzir uma espécie de upgrade para a construção contemporânea. Precisamos de uma caixa de ar, colocámos a cortiça como isolamento térmico e acústico por dentro, e terminámos com um ripado novo que mantém aquele aspecto da madeira. A estrutura é toda original. Nós conseguimos fazer no espaço interior o isolamento com esta cortiça com os vidros e depois por fora manter as telhas à vista naquela consola. Um desafio muito grande também foi conseguir encaixar aqueles caixilhos metálicos porque interessava-nos manter aquela transparência entre as paredes e a cobertura. Aquilo foi uma pormenorização em obra... Quando olharam para aquilo acharam impossível porque era preciso entalhar e o serralheiro... tínhamos diferenças por causa de 10 cm entre os caixilhos. As peças vieram todas mais ou menos feitas de serralharia, mas depois ali era preciso pegar na peça, pô-la no local, desenhar os entalhes, voltar a retirar, cortar, terminar a peça, soldar e pô-la lá em cima...
SN - Mais uma vez um trabalho de minúcia também na serralharia.
PA - O serralheiro olhava para nós de lado, no início, mas no fim já estava tanto ou mais orgulhoso que nós porque conseguiu fazer aquilo. Foi um desafio! Houve outra coisa que aconteceu. Durante a obra, nós tivemos uma excelente relação com a empresa construtora. É preciso dizê-lo porque senão fosse isso se calhar algumas coisas não teriam corrido tão bem. Chegávamos a sair da reunião de obra e, no dia a seguir, estava o carpinteiro aflito a perguntar se poderíamos lá ir outra vez porque tinha chegado um carregamento de madeira e ele suspeitava que não era bem aquilo que nós queríamos. Ele próprio já estava quase a conseguir pensar aquelas coisas todas como nós e, de facto, tinha razão. Não era bem aquilo que nós queríamos.
SN - Foi um bom trabalho de equipa. Eles também estavam na vossa equipa, não é? A trabalhar em conjunto.
PA - Sim, sim.
SN - Uma das coisas que eu também achei muito curiosa foi que o edifício de zinco canelado tinha também aqui outros desafios de construção, nomeadamente a importância de construir de uma forma relativamente seca. Susana, podes-nos explicar porquê e que soluções construtivas é que aplicaram.
SR - O edifício foi estendido um pouco em relação ao que existia, mas no seu interior a construção foi, efectivamente, seca. Não houve betão, nem nada. Foi à base de vigas de madeira e Viroc para fazer a laje do mezzanine, que se encontra por cima da exposição. Também, acima de tudo, porque este tipo de construção permite a absorção da vibração, que naquele local não acontece com muita frequência porque não são assim tantos os comboios, mas quando passam nota-se e muito. Se naquele local tivesse havido uma construção tradicional, em betão, as fissuras iriam aparecer por todo o lado.
Essa foi a principal razão, mas também é algo que é presente... É transversal em todos os nossos projectos este tipo de construção. O Pedro pode falar também um pouco mais sobre isso, já que ele é mais focado nesta questão...
SN - Da parte construtiva.
SR - Sim.
SN - Pedro, queres acrescentar alguma coisa?
PA - Acrescento, sim. Nós podemos começar com a história daquele edifício com a reconstrução pós incêndio porque aquilo era um edifício (talvez do início do século XX), que tinha umas paredes de alvenaria e uma cobertura de madeira com telha. Com um incêndio tudo isso ruiu e foi reconstruído de uma forma menos interessante com uma série de peças standard já desta linguagem mais recente, destes armazéns, e pareceu-nos que havia ali uma forte oportunidade e necessidade de transformar aquilo. O que é que nós fizemos? Retirámos todos estes elementos metálicos mais recentes. A nova estrutura da cobertura e a própria cobertura e, como a Susana estava a dizer, ficámos com as paredes de alvenaria já fissuradas. Já não fissuravam mais, já tinham estado lá...
SN - Já tinham resistido a estes anos todos, não é?
PA - Exacto. As fissuras que tinham de aparecer já tinham aparecido. E então o que é que nós fizemos? Mantivemos esse espaço das paredes existentes como a principal sala de exposição. E aproveitámos também esta inércia térmica daquela matéria para forçar ainda mais isso porque aquele edifício tinha ar condicionado, mas praticamente não se usa. O que é que nós fizemos? Uma forra de gesso cartonado, por dentro, porque depois foram construídos uns pilares, que ficaram fora da parede. Tinham um aspecto muito irregular. Nós conseguimos uniformizar isso, autonomizar esta nova parede daquela casca fissurada.
Depois por fora, como esticámos o edifício com mais duas asnas metálicas, uniformizamos estes dois tempos da construção – aquela que tapou a alvenaria existente e esta parte que esticava, em direcção a poente, uniformizámos com o zinco. Quem entra acaba por se calhar não se aperceber.
SN - Não ter a percepção dessa diferença, não é?
PA - Exactamente. Não tem a percepção daquilo que se fez aqui. Ou seja, esta parte em que esticámos o edifício, que eventualmente corresponde ao primeiro módulo, que é a zona da entrada. E depois o segundo, que é a zona da recepção com aquela zona com o pé direito duplo. Tudo isso é a parte coberta da madeira e do espaço exterior. Então nós, com a nova estrutura, e uniformizando com a pele, fizemos esta manobra. Depois tem todos aqueles calços da estrutura metálica e alvenaria para evitar transmitir as vibrações, que são muito eficientes em termos energéticos porque, por fora, temos uma fachada ventilada. Estamos a falar de um espaço quase com cerca de 50 cm. Ou seja, é possível passar lá dentro e conseguimos colocar aí, inclusive, as máquinas do ar condicionado. As unidades exteriores ainda acentuam isto porque elas sugam o ar. Há lá umas grelhas camufladas, elas sugam o ar e fazem uma corrente de ar. Naquelas paredes, elas sugam o ar numa ponta e expulsam na outra, por isso parece tudo muito simples, mas foi de uma complexidade construtiva e de pormenorização... Não vou dizer exagerada. Foi o que teve de ser, mas tudo isto implicou um controlo da construção com meios relativamente arcaicos, não é? Toda esta construção é muito honesta. Temos a betonilha afagada no pavimento, temos uma laje de mezzanine, como a Susana disse, que é o mais simples que conseguimos fazer, com as vigas de madeira apoiadas na treliça metálica.
Este foi outro momento interessante do projecto porque aí construímos uma treliça de 30 metros. Na altura, outro serralheiro também achava impossível fazer, mas nós lá conseguimos convencê-lo porque essa treliça acaba por fazer tanto de estrutura mezzaninecomo de guarda. Para rematar isso, conseguimos colocar aquele painel do policarbonato, que dá aquela luz difusa e insinua umas sombras. Essas sombras dão um aspecto interessante entre a exposição e o mezzanine. Tudo isto é este género de construção de peças que se vão colocando... Existem os neoprenes ou borrachas que se inserem, entre as peças, para evitar que o desconforto exista e que aquelas vibrações do comboio interfiram o mínimo possível com a construção para ela se manter.
SN - Outra coisa muito engraçada que eu descobri na investigação deste projecto foi que a região de Trás-os-Montes era uma das maiores produtoras de cortiça em Portugal. Imaginei sempre que fosse o Alentejo. E esta estação, em específico, parece que tinha uma grande importância no escoamento do produto para a cidade do Porto. Falem-nos um pouco sobre isso, Susana. E falem-nos também como é que utilizaram esta memória da cortiça no próprio projecto.
SR - Efectivamente é verdade. Trás-os-Montes, mais concretamente a zona de Mirandela, em tempos já foi a região com maior produção de cortiça, mas agora claro que é o Alentejo. Isso foi-se perdendo. Essa produção acontecia, mais concretamente, na Quinta do Romeu. Era a partir dessa quinta que a cortiça era expedida, através da linha do Tua, e depois fazia o transbordo precisamente no edifício, onde está a exposição do Centro Interpretativo do Vale do Tua. Daí partia para o Porto. No Porto ia para o edifício, que existe ainda actualmente, mais ou menos em frente da antiga alfândega do Porto, que era, em tempos, a sede de Clemente Menéres.
Clemente Menéres foi um dos mecenas, ou o maior mecenas da construção da linha do Tua precisamente porque precisava dessa infraestrutura para o seu negócio, para fazer a venda da cortiça e enviá-la para o Porto. E pegando nessa importância desse material e que nós tanto gostamos, aplicámos... Claro que, juntamente com a equipa com que trabalhámos na exposição, em que estava o Miguel Palmeiro com as cariátides, esse material tem o maior protagonismo na exposição, criando uma espécie de um túnel para se ter uma sensação de quase se está a percorrer a antiga linha do Tua, que tinha imensos túneis e muito estreitos. Daí essa...
SN - Essa referência no projecto...
SR - Sim, essa referência no projecto.
SN - Acho interessante, já agora, esta nota... Já não é a primeira vez que falámos aqui no podcast sobre Clemente Menéres. Mencionámo-lo também no episódio, que se foca no projecto da Casa da Arquitectura. Quem nos falou dele foi o arquitecto Guilherme Machado Vaz. Já agora, convido-vos a assistirem também esse episódio, até porque é engraçado como é que as histórias e as personagens se vão cruzando.
SR - Sim.
SN - Já agora, Pedro, contaste em voz off uma história muito interessante sobre um funcionário que trabalha no Centro Interpretativo do Vale do Tua e que revela um pouco o orgulho que as pessoas têm neste edifício que ambos construíram. Podes partilhar connosco essa história?
PA - Sim, o funcionário é a pessoa que está lá desde o início, desde a abertura e vive aquilo intensamente. Ele faz a visita guiada e fala muito como visitante. No fim dessa visita guiada, convida que alguém escreva alguma coisa no livro de visitas. De vez em quando, nós íamos lá e ele estava muito orgulhoso e mostrava-nos alguns elogios que os visitantes faziam ao edifício, à exposição, ao trabalho dos arquitectos.
Para nós era também um orgulho. A avaliação pelos pares tem um valor e esta do público, em geral, tem outra. São paralelas, mas é importante e é sempre muito gratificante quando verificámos que as pessoas que vão ao edifício e têm a expectativa de ter uma determinada experiência, acabam por ter algo superior, encontrando naquele lugar uma diferença arquitectónica nas suas vidas. Isso para nós sabe bem. E é muito gratificante!
SN - E ao mesmo tempo as pessoas que também trabalham no próprio edifício mostram esse orgulho e vontade até de vos mostrar.
PA - Sim.
SN - Achei esta história muito curiosa. Pedro, gostava de saber o que é que te ensinou este projecto sobre a arquitectura?
PA - Ensina que é um trabalho de equipa, que não é brincadeira porque desde o início... Isto foi, se quisermos mencionar, a nossa primeira obra a sério. Eu trabalhei no escritório Menos é Mais Arquitectos, com o Francisco Vieira de Campos e com a Cristina Guedes, durante cinco anos. A Susana tirou um mestrado em Museologia, teve experiência em Guimarães e lá fora, com outras coisas mais pontuais. Encontrámos esta oportunidade e agarrámo-la. Para além disso, existiu esta necessidade... Durante o projecto, fomos percebendo o impacto desta obra, mas uma coisa é a ideia que nós temos e outra coisa é quando embatemos com ele porque, de repente, percebemos que isto foi uma âncora importantíssima para o desenvolvimento e esperança ali em Foz Tua. Quando nós lá chegámos, as pessoas estavam completamente deprimidas, estavam numa onda negativa porque tinham perdido a linha do Tua e houve aquelas sucessivas crises que afectaram a população de Trás-os-Montes. Havia ali um certo desencanto, talvez, com a própria vida. Aquela era uma zona onde não encontrávamos ninguém.
De repente, as pessoas começaram a entusiasmar-se. As pessoas até, no início, olhavam para nós... Éramos muito novos... Chegávamos lá e as pessoas olhavam para nós com uma certa desconfiança, mas, entretanto, a relação foi ficando cada vez melhor e houve, inclusive, pessoas com quem contactámos e gerava-se hospitalidade. Na altura das maçãs, ofereciam-nos maçãs... (risos)
SN - (risos)
PA - Temos de falar disto, não é? A alma daquele sítio era quase o Restaurante Calça Curta e também criámos uma certa relação com aquelas pessoas. Tudo isto foi muito gratificante porque fomos percebendo como é que o trabalho de arquitectura transformou aquele sítio em algo melhor porque, entretanto, já abriu lá outro negócio de comida, já sabemos que foi instalado e está prestes a abrir um pequeno hotel. O outro hotel que lá existia modernizou-se e a aceitação da obra também foi, para ambos, uma surpresa porque, embora possamos ter uma certa expectativa, se calhar nunca esperámos algo que atingisse estas proporções... Ou tentamos proteger-nos das desilusões, evitando expectativas maiores. Obviamente, encarámos o projecto com muita responsabilidade porque percebemos que era um marco importante. O que aprendemos com isto foi mesmo a importância da arquitectura e do papel da arquitectura na transformação. Ou seja, como é que um pequeno equipamento ou um investimento público pode dinamizar o território e fazer a diferença na região, no fundo.
SN - Fazer a diferença na população, não é? Ou seja, como é que a arquitectura pode mudar também a região e pode desenvolvê-la. Susana, e tu, o que é que aprendeste com este projecto sobre a arquitectura?
SR - Acima de tudo, foi o trabalho em equipa e, também como o Pedro já disse, este contacto directo com as pessoas e tantas entidades. Como o Pedro referiu, não foi só uma, nem duas, nem três...
Foram, pelo menos, meia dúzia, ou mais... Já nem sei! Foram tantas entidades com quem tivemos de lidar para a concretização do projecto e tanta gente que conhecemos! Foi uma aprendizagem constante, ao longo de todo o processo. É mesmo muito gratificante o feedback que fomos tendo, e ainda vamos tendo, das pessoas que visitam o centro e que gostam. Isto, no fundo, até parece que foi sempre assim... (risos)
SN - (risos)
SR - Confesso que, para mim, isso é muito simpático ouvir essas palavras. Parece que, no fundo, quase não houve uma intervenção. Não há essa vontade expressa de deixar uma marca à força toda. Queremos é fazer o nosso melhor, melhorar o lugar, a vida das pessoas e o propósito com que o Centro Interpretativo foi feito. Há uma citação de um filme, que nós costumámos usar muito que se aplica bem a este projecto e que assenta que nem uma luva, que é do Lampedusa. Passo a citar: “É necessário mudar para que tudo fica na mesma.”(“Everything must change for everything to remain the same”). Ou seja, mudar para que o essencial permaneça e esse é o lema recorrente não só deste projecto, como de outros que temos a decorrer no nosso escritório, ligados à intervenção do património. Essencialmente foi isto. É uma aprendizagem constante. Nunca se pára de aprender, nunca se deixa de aprender.
PA - Sim, e o trabalho em equipa. O trabalho em equipa, na primeira fase, com a construtora, e depois, na fase da exposição, com a própria equipa do Miguel Palmeira, com as cariátides, com a Gabriella Casella e a Catarina Providência que agarraram aquilo e fizeram... E, se calhar, entenderam melhor o que tinha de ser a exposição do que se fôssemos só nós a tratar dessa parte. Foi uma experiência que, se calhar, será difícil repetir com tudo isto a bater tão certo e com estes entendimentos entre todos.
SN - Sim. Sinto que também houve muita dedicação, muita partilha de muita participação simultaneamente. Susana e Pedro, muito obrigada pela vossa partilha. Muito obrigada por nos relembrarem da importância que, sobretudo nestes territórios, a arquitectura pode ter no desenvolvimento das comunidades. E muito obrigada por esta conversa!
SR - Não sei se me permites só acrescentar mais uma coisa.
SN - Diz, Susana. Permito sim!
SR - Porque o Pedro acabou por se esquecer disso e eu também me estava a esquecer. Uma coisa rara também neste processo foi a sua rapidez. E é algo que nós não estamos a conseguir replicar no resto dos projectos que temos.
SN - Estamos a falar de dois, três anos?
SR - Foi tudo muito rápido, desde o concurso até à conclusão da obra. Foi tudo muito rápido. Estamos a falar de um projecto que decorreu entre 2015 até final de 2017, quando terminou a obra. O Centro Interpretativo foi inaugurado em Fevereiro de 2018. Foi mesmo muito rápido!
SN - Isso é um record. Aliás, temos falado muito disso aqui no podcast. A maior parte das obras públicas demora cerca de dez anos, oito anos, não é?
SR - Sim.
SN - Estamos a falar de um edifício com extrema qualidade e que, ao mesmo tempo, também teve de aferir e dar provas perante tantas instituições que o validaram, não é?
SR - Sim!
SN - E com equipas técnicas também grandes e, portanto, isso também tem esse mérito. Susana, ainda bem que acrescentaste esse ponto porque tem esse mérito deste curto espaço de tempo.
Ambos estão de parabéns! É mérito vosso de terem encontrado também sistemas e formas de trabalhar com a vossa equipa para que isto pudesse tudo funcionar tão rapidamente.
SR - Sim, foi uma luta constante. O orçamento era tão apertado que foi também preciso encontrar ali boa vontade entre todos para se levar a bom porto a obra.
PA - Sim, nós tivemos também o apoio muito próximo de uma equipa da EDP, que nos deu sempre muita cobertura. As viagens de comboio, infelizmente, durante a obra, como havia muito trabalho, devemos ter feito uma ou duas.
SN - Ok.
PA - Não funciona... (risos)
SN - Eu imaginei sempre, quando estava a preparar a entrevista, que ambos se deslocavam a esta obra de comboio. (risos)
PA - Infelizmente, não é compatível porque, saindo do Porto, no primeiro comboio, chegávamos lá...
SN - Não era eficiente em termos de tempo.
PA - Não. As reuniões de obra demoravam o dia todo. Isto tinha muita minúcia. Se fôssemos de comboio, estávamos limitados a três horas, com almoço pelo meio. Era impossível. Infelizmente, sim, mas depois já fomos lá com outros colegas de comboio. Assim a viagem torna-se muito mais agradável. É outro tempo. No tempo da obra e do trabalho, infelizmente, não era compatível. Depois do projecto estar terminado, tem-se um conforto muito melhor para realizar essa viagem.
SR - São duas horas e meia de viagem de comboio, por isso ao todo estamos a falar de cinco horas... De repente, era só viagem e não se estava a aproveitar para, efectivamente, resolver os problemas na obra, que era essencial.
PA - Mas recomendamos que os visitantes aproveitem a viagem de comboio porque saem mesmo no meio do edifício. E não se preocupem com mais nada. Acho que até têm um desconto no bilhete.
SN - Pois têm. Já ouvi dizer que tem desconto. Portanto, não há mesmo desculpas para não fazer esta viagem e ir até ao Centro de Interpretação do Vale do Tua. Pedro e Susana, muito obrigada pela vossa partilha e por estas histórias. Muito obrigada!
SR - Teríamos muitas mais para contar, mas o tempo é curto! (risos)
PA - Nós é que agradecemos!
SR - Nós é que agradecemos, sim!
Nota do editor: A transcrição da entrevista foi disponibilizada por Sara Nunes e segue o antigo acordo ortográfico de Portugal.